Manhã de 21 de abril de 1792. O condenado é conduzido pelas ruas do Rio de Janeiro, cercado pela tropa, desde a prisão até o patíbulo instalado no largo da Lampadosa. A cabeça e a barba raspadas, coberto por uma túnica grosseira e portando um crucifixo, sobe calmamente os degraus, acompanhado do frei encarregado de lhe dar o amparo de orações na hora da morte. A multidão reunida assiste a tudo consternada.

Ao atingir o patamar, o homem dirige-se ao carrasco e pede-lhe que abrevie seu sofrimento, ao que este responde pedindo perdão, pois apenas cumpria o que mandava a lei. Tão logo o corpo ainda vivo do Tiradentes projetou-se no espaço vazio, o carrasco Capitania jogou-se sobre seus ombros, firmando-se na corda e forçando seu peso sobre o do enforcado para apressar sua morte.

Cumpria-se assim a sentença pronunciada três dias antes, que condenava o réu “a com baraço e pregão ser conduzido pelas ruas publicas ao lugar da forca e nela morra morte natural para sempre, e que depois de morto lhe seja cortada a cabeça e levada a Villa Rica aonde em lugar mais público dela será pregada, em um poste alto até que o tempo a consuma, e o seu corpo será dividido em quatro quartos, e pregados em postes pelo caminho de Minas”.

A visão derradeira dos moradores da capital da colônia de Joaquim José da Silva Xavier é bem distinta da figura presente até hoje no imaginário nacional, que remete a Jesus Cristo. Quase três anos antes, o herói da Inconfidência fora preso sem resistência, tentando se esconder. Tiradentes também tinha outras alcunhas, como “o Corta-vento” e “o Liberdade”. São detalhes pouco conhecidos, mas não menos importantes para entender quem era ele e seu papel na conjuração, muito além dos mitos construídos a partir do fim do século 19, quando se formava a República brasileira.

Nascido em 1746, na fazenda do Pombal, perto de São José Del Rei do Rio das Mortes (hoje a cidade de Tiradentes), Joaquim José era o quarto dos sete filhos de Domingos da Silva Santos e Antônia da Encarnação Xavier. Aos 11 anos tornou-se órfão. Até perto dos 20, labutou com os irmãos nas terras herdadas do pai, ao mesmo tempo que praticava as artes de dentista aprendidas com o tio e padrinho.

Por essa época resolveu comprar algumas mulas, escravos, mercadorias para tentar a vida como tropeiro nos sertões de Minas Gerais e nas vilas do Caminho Novo, que levava ao Rio de Janeiro. Chegou até a Bahia, mas os negócios mal o sustentavam. Desistiu de vez depois de ter sido preso (perto da atual Diamantina) ao tentar defender um escravo que era espancado pelo dono, um poderoso fazendeiro.

Até 1775, perto dos 30 anos, sobreviveu como dentista, ganhando por isso o apelido de “Tira-dentes”. Trabalhava ocasionalmente também como minerador e como médico, em vista dos conhecimentos sobre plantas medicinais adquiridos com seu primo, frei José Mariano da Conceição Vellozo, consagrado botânico à época. Cansado das atividades errantes pouco rentáveis, alistou-se na tropa paga de Minas, o Regimento de Cavalaria, e recebeu o posto de alferes – hoje equivalente ao de subtenente.

As qualificações de Tiradentes eram reconhecidas mas não recompensadas. Assistia indignado à promoção de colegas, enquanto suas atribuições só aumentavam. Numa das missões, o governador Luís da Cunha Meneses determinou que participasse do grupo encarregado de fazer o levantamento geológico e mineralógico do leste de Minas, na fronteira com o Rio, área então fechada à mineração. E justificou a ordem devido à “notória inteligência mineralógica” do alferes.

Nem assim conseguiu ele uma promoção. Formalizou queixa por isso, mas o governador afirmou que o militar “não passava de um mariola a quem se podia dar com um pau”. Humilhado, Tiradentes pediu licença da tropa e requereu a ocupação de terras entre os municípios de Matias Barbosa e Simão Pereira, na divisa entre Minas e o Rio. Sem recursos e tino comercial, foi levado novamente à falência, tendo apenas suas habilidades de dentista para afugentá-lo da miséria.

Confirmada a sina de ter de viver sob soldo, o alferes voltou ao regimento, sendo logo encarregado de missão que o levaria a várias viagens ao Rio de Janeiro. Pôde, então, bem estudar o solo e o sistema fluvial da região, elaborando planos para o aproveitamento das águas locais, de modo a solucionar o grave problema de abastecimento da capital da colônia.

Conspirador urbanista

A abrangência e a viabilidade das propostas do militar são surpreendentes e estão entre suas facetas menos conhecidas. Apresentou projetos de canalização dos rios Maracanã e Andaraí, sugeriu a drenagem de alguns mangues e fez ver a possibilidade de aproveitamento dos desníveis dos córregos Catete, Comprido e Laranjeiras para a instalação de moinhos. Também propôs a construção de armazéns e trapiches na área do porto que permitiriam a carga e descarga de vários navios ao mesmo tempo. Idealizou ainda um serviço de barcas ligando o Rio a Praia Grande, em Niterói.

Os administradores desconsideraram os planos; só tinham olhos para a cobrança de impostos. Menos de 30 anos depois, porém, dom João VI iniciaria obras na capital nos mesmos moldes das ideias de Tiradentes. Em 1889, projetos de saneamento do engenheiro Paulo Frontin confirmaram a validade das propostas.

O apetite fiscal da coroa era tão grande quanto a dificuldade em quitar suas dívidas com a Inglaterra. Portugal pouco produzia além de vinhos e quinquilharias. Comprava dos britânicos quase tudo o que consumia. O ouro brasileiro era a principal moeda de pagamento, mas, a partir da segunda metade do século 18, já dava mostras de esgotamento.

Foi nesse período, entre 1786 e 1789, que Tiradentes passou a conspirar. A voracidade da coroa – que cobrava um quinto de tudo o que fosse recolhido na atividade mineradora, bem como outros tributos sobre o comércio, a lavoura e a pecuária -, além da notória corrupção do governador Cunha Meneses, fazia acumular o descontentamento em toda a capitania de Minas.

À insatisfação sobre a carreira no regimento, Joaquim José somava novas ideias. Fez sua cabeça na biblioteca do cônego Luís Vieira da Silva. Ali conheceu as teses dos franceses Rousseau, Montesquieu e outros iluministas, que secundavam o pensamento do inglês John Locke.

Costumava circular com livros debaixo do braço, inspirado também pela ação dos norte-americanos, que haviam se separado do Império Britânico e implantado um sistema federalista de governo (1776). Joaquim José estava sempre afirmando que cabia aos brasileiros dirigir sua própria república. Obcecado por essas ideias e vendo que elas também ocupavam mentes mais ilustres, começou a reunir-se com personalidades de Vila Rica (hoje Ouro Preto), como Tomás Antônio Gonzaga e Inácio José de Alvarenga Peixoto.

Execução de Tiradentes, em 21 de abril de 1792 / Crédito: Wikimedia Commons

 

Não bastaria tornar o Brasil independente, era preciso dar-lhe também as condições para se manter como nação livre e forte. Para isso, deveria ser dedicado especial esforço à educação do povo, ainda que o fim da escravidão estivesse nos planos de forma apenas mitigada. Seriam criadas escolas, uma universidade em Vila Rica, e a capital transferida para São João Del Rei. Seria implementada a construção de fornos siderúrgicos e a fabricação de todos os produtos que até então só eram obtidos de Portugal.

Advogados, bacharéis, médicos, membros da Igreja, militares, gente do povo, a insatisfação parecia generalizada. E os conspiradores pretendiam fazer uso dela, exacerbada diante da perspectiva de uma nova derrama – o confisco de bens para completar os débitos acumulados na arrecadação mínima de 100 arrobas de ouro (1470 kg) por ano – esperada para o início de 1789, sob as ordens do novo governador, Luís Furtado de Mendonça, o visconde de Barbacena.

Tiradentes se sobressaía como um dos líderes militares do movimento ao lado de um velho conhecido a quem fora subordinado: o tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrade, comandante do Regimento de Cavalaria Regular das Minas Gerais. Também participavam de reuniões para o levante os coronéis Domingos de Abreu Vieira e José Aires Gomes, das forças auxiliares, e até o coronel Joaquim Silvério dos Reis, que viria a ser o grande traidor dos rebeldes.

Por pretender atrair a todos, dos mais nobres aos mais humildes, o movimento acabou por dar espaço a gente como o português Silvério dos Reis e outros traidores: Ignácio Correa Pamplona e Basílio de Brito Malheiros. Eles não titubearam em denunciar a conspiração ao visconde.

A revolta fora planejada para estourar no dia da derrama. A senha do movimento era “tal dia é o batizado”, a data do confisco. Tiradentes e Andrade desencadeariam as ações em Vila Rica, que culminariam com a tomada do palácio, a degola de Barbacena e apresentação de sua cabeça ao povo, que seria então chamado a apoiar uma junta provisória de governo. O Rio seria ocupado em seguida e conspiradores acionados também em São Paulo e na Bahia. Mas, a essa altura, o governador já sabia da trama.

Erro fatal

Planos escritos de ação para o levante nunca foram recuperados. A reconstituição dos acontecimentos e do papel dos participantes sempre foi dificultada pela escassez de documentação. Mas está claro que, em todo o planejamento, faltou cogitar saídas alternativas caso algo desse errado. Erro crasso, considerando haver no grupo militares de alta patente e o próprio Tiradentes, que já demonstrara astúcia e senso estratégico na derrota do bando do Montanha.

O tribunal (uma comissão especial formada por desembargadores da Casa de Suplicação de Lisboa) culminou com a condenação de 28 réus, além de Tiradentes, chegando a impor penas à memória e aos descendentes de outros três falecidos na prisão. A pena de morte aplicada a dez dos conjurados, porém, foi comutada na última hora em degredo perpétuo pelo regente dom João, em nome da rainha dona Maria I. A forca restou só para o alferes. Há quem afirme que, dessa forma, Portugal quis fazer entender a conspiração como aventura de um reles e tresloucado dentista, que com lábia aliciou mentes mais ilustres.

Tiradentes Esquartejado, de Pedro Américo / Crédito: Wikimedia Commons

 

Kenneth Maxwell, numa das mais importantes obras sobre a Inconfidência, A Devassa da Devassa, esboça a tese de que Tiradentes seria mero bode expiatório, elemento apenas periférico dentre os plutocratas e intelectuais que compunham o movimento nascido não apenas de ideais, mas fundamentalmente de interesses econômicos. (Como a Revolução Americana.) O mesmo brasilianista, porém, não deixa de reconhecer o caráter ímpar do mártir, de exceção “em uma história particularmente carente de grandes homens”. Durante os interrogatórios sempre reclamou Joaquim José a exclusiva culpa pela iniciativa da sedição, inocentando seus companheiros de outros crimes que não fosse o de ouvir suas ideias.

Qualquer que tenha sido seu papel, Tiradentes tornou-se um autêntico herói nacional. Primeiro foi adotado pelo movimento republicano, que o elegeu como mártir cívico-religioso e antimonarquista, fazendo prosperar as representações que o aproximam de Cristo. O 21 de abril tornou-se feriado nacional em 1890.

“Pois seja feita a vontade de Deus. Mil vidas eu tivesse, mil vidas eu daria pela libertação da minha pátria”, teria dito Tiradentes ao ouvir serenamente a sentença. Trinta anos depois da execução, dom Pedro I, o herdeiro da coroa que o esquartejara, proclamava a independência do Brasil. Era a prova de que os propósitos de Joaquim José foram plantados em terra fértil. Um dos conjurados, José de Rezende Costa, filho, tornou-se constituinte na Assembleia de 1823, a primeira da nova nação brasileira.